segunda-feira, agosto 30, 2004

Um Beijo

Um minuto o nosso beijo
Um só minuto, no entanto
Nesse minuto de beijo
Quantos segundos de espanto!
Quantas mães e esposas loucas
Pelo drama de um momento
Quantas milhares de bocas
Uivando de sofrimento!
Quantas crianças nascendo
Para morrer em seguida
Quanta carne se rompendo
Quanta morte pela vida!
Quantos adeuses efêmeros ,
Quanta loucura de Deus!
Que mundo de mal-amadas
com as esperanças perdidas
Que cardume de afogadas
Que pomar de suicidas!
Que mar de entranhas correndo
De corpos desfalecidos
Que choque de trens horrendo
Quantos mortos e feridos!
Que dízima de doentes
Recebendo extrema-unção
Quanto sangue derramado
Dentro do meu coração!
Quanto cadáver sozinho
Em mesa de necrotério
Quanta morte sem carinho
Quanto canhenho funéreo!
Que plantel de prisioneiros
Tendo as unhas arrancadas
Quantos beijos derradeiros
Quantos mortos nas estradas!
Que safra de uxoricidas
A bala, o punhal, a mão
Quantas mulheres batidas
Quantos dentes pelo chão!
Que monte de manuscritos
Atirados nos baldios
Quantos fetos nos monturos
Quanta placenta pelos rios!
Quantos mortos pela frente
Quantos mortos à traição
Quantos mortes de repente
Quantos mortos sem razão!
Quanto câncer sub-reptício
Cujo amanhã será tarde
Quanta tara, quanto vício
Quanto enfarte do miocárdio
Quanto medo, quanto pranto
Quanta paixão, quanto tudo!
Tudo isso pelo encanto
Desse beijo de um minuto:
Desse beijo de um minuto
Mas que cria, em seu transporte
De um minuto, a eternidade

E a vida, de tanta morte



Vinícius de Moraes

Um comentário:

Luis Duverge disse...

Tenho pena que deixes estas palavras ao vento e não as alimentes com os teus sentimentos.
Gostei muito.