segunda-feira, agosto 30, 2004

Um Beijo

Um minuto o nosso beijo
Um só minuto, no entanto
Nesse minuto de beijo
Quantos segundos de espanto!
Quantas mães e esposas loucas
Pelo drama de um momento
Quantas milhares de bocas
Uivando de sofrimento!
Quantas crianças nascendo
Para morrer em seguida
Quanta carne se rompendo
Quanta morte pela vida!
Quantos adeuses efêmeros ,
Quanta loucura de Deus!
Que mundo de mal-amadas
com as esperanças perdidas
Que cardume de afogadas
Que pomar de suicidas!
Que mar de entranhas correndo
De corpos desfalecidos
Que choque de trens horrendo
Quantos mortos e feridos!
Que dízima de doentes
Recebendo extrema-unção
Quanto sangue derramado
Dentro do meu coração!
Quanto cadáver sozinho
Em mesa de necrotério
Quanta morte sem carinho
Quanto canhenho funéreo!
Que plantel de prisioneiros
Tendo as unhas arrancadas
Quantos beijos derradeiros
Quantos mortos nas estradas!
Que safra de uxoricidas
A bala, o punhal, a mão
Quantas mulheres batidas
Quantos dentes pelo chão!
Que monte de manuscritos
Atirados nos baldios
Quantos fetos nos monturos
Quanta placenta pelos rios!
Quantos mortos pela frente
Quantos mortos à traição
Quantos mortes de repente
Quantos mortos sem razão!
Quanto câncer sub-reptício
Cujo amanhã será tarde
Quanta tara, quanto vício
Quanto enfarte do miocárdio
Quanto medo, quanto pranto
Quanta paixão, quanto tudo!
Tudo isso pelo encanto
Desse beijo de um minuto:
Desse beijo de um minuto
Mas que cria, em seu transporte
De um minuto, a eternidade

E a vida, de tanta morte



Vinícius de Moraes

terça-feira, agosto 24, 2004

Mais uma vez... Shakespeare

Ross - "(...) estais vendo? Os céus, agitados pela ação de um homem, ameaçam seu sangrento palco. Já é dia, segundo o relógio, mas a sombria noite estrangula a lâmpada errante. Será que reina a noite, ou o dia sente vergonha de que as trevas cubram a face da terra sepultada, quando a viva luz deveria beijá-la?"
William Shakespeare - Macbeth - Ato Segundo - Cena IV


Macbeth - "(...) Triste necessidade que nos obriga por prudência a lavarmos nossas honras nas correntes da adulação, fazendo de nossos rostos máscaras de nossos corações, para esconderem o que são!"
William Shakespeare - Macbeth - Ato Terceiro - Cena II


Mais Shakespeare... Um pouquinho mais...

segunda-feira, agosto 23, 2004

Sobre a vida (E a falta dela)....

Navalhas machucam
Rios são úmidos
Ácidos mancham
E drogas causam câimbras

Armas são ilegais
Laços afrouxam
Gás cheira mal
É melhor viver.


Dorothy Parker

quinta-feira, agosto 19, 2004

Lágrimas de Anjo


Chuva: sinal de anjos magoados.
Um dia chorei minhas lágrimas tal qual os anjos choram a chuva.
De nada adiantou...
Tudo permaneceu exatamente como antes de ter meu corpo encharcado
e a alma mergulhada em mim.
Nem mesmo dos anjos, com quem compartilhava o ritual,
vieram consolos.
Desisti. Segui o caminho.
E quando cheguei, percebi que não me deixariam parar.
Devia chorar mais temporais
e se realmente a decência me acompanhasse,
teria de chorar por Ela.
Tudo o que queria era a certeza de que Os esqueceria,
ou de que não deixariam eu me afogar.



Débi
Agosto de 2004.

terça-feira, agosto 17, 2004

Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?



Cecília Meireles

quinta-feira, agosto 12, 2004

O Assassino era o Escriba

Meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito inexistente.
Um pleonasmo, o principal predicado de sua vida,
regular como um paradigma da primeira conjugação.
Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial,
ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito
assindético de nos torturar com um aposto.
Casou com uma regência.
Foi infeliz.
Era possesivo como um pronome.
E ela era bitransitiva.
Tenteou ir para os EUA.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido em sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas expletivas,
conetivos e agentes da passiva o tempo todo.
Um dia matei-o com um objeto direto na cabeça.



Paulo Leminski





segunda-feira, agosto 02, 2004

Inspiração durante uma aula de datilografia. Desconto pra mim, que só tinha 14 aninhos..


A dúvida

O cair da chuva
O soprar dos ventos
O estouro dos trovões
O clarão de um relâmpago

Junto ao bater da máquina
Junto à solidão
Algo que vira angústia
E faz doer qualquer coração

Solidão ou tristeza?
Tristeza ou amor?
Amor e problemas...
Que só causam mais dor

Terá isso cura?
Passageiro isso será?
Persistirá no coração?
Ou partirá?

Porque escrevo?
Não sei
Me sinto assim?
Acho que não
Ou será que sim?



Débi
Novembro de 1998